Pedro Duarte Silveira

Ao formular os discursos, Lacan vai se referir à citação de Freud sobre as atividades impossíveis: governar, educar e curar. Esta última será, em outro momento, substituída por psicanalisar. Estes serão os nomes dos discursos, que serão nomeados pelas suas impossibilidades. Lacan introduz um quarto, aquele que a psicanálise irá evidenciar e demonstrar, a histérica como sinônimo de sujeito. Os agentes dos discursos são agentes de alguma coisa que é impossível. É então na linha superior dos discursos que encontraremos a impossibilidade. O mestre não consegue fazer seu mundo funcionar, a histérica não consegue se fazer desejar, não se consegue educar o desejo. E o analista, como é um objeto comandar?

Estas questões estão desenvolvidas em Radiofonia, escrito que foi lido em um programa radiofônico belga, e também no seminário O avesso da psicanálise, que é da mesma época.

Dizer que são impossíveis é somente declarar prematuramente que são reais, pois o real é o impossível, diz Lacan em Radiofonia, o do que se trata é fazer a prova.

Da impossibilidade dessas atividades já se tinha conhecimento, mas foi Lacan que formulou que o impossível é o real e, mais ainda, tratou de fazer a prova.

Todos os discursos se relacionam com o real, com o impossível, mas é somente a partir da emergência do discurso do analista que esta questão fica colocada; eles só ficaram explícitos após o advento da psicanálise. Eles são sincrônicos, vêm ao mundo todos juntos, em um mesmo momento, embora se possa a posterioriverificar suas diacronias, fazer uma história das suas emergências. Os discursos teriam um “progresso”, uma organização lógica, que se iniciaria no discurso da histérica, passando pelo discurso do mestre, indo ao discurso da universidade e finalizando no discurso do analista. Embora o discurso do mestre seja o laço de funcionamento básico da linguagem, Lacan dirá que o inconsciente funciona como o discurso do mestre, ele não será colocado no início do “progresso” porque nele, como as coisas funcionam, o sujeito é representado por um significante, S1, que pode ficar recalcado, não evidente. É somente com o aparecimento do discurso da histérica, caracterizado pelo fato de o sujeito não se sentir representado pelo significante, fazendo então seu aparecimento acima da barra, reivindicando um novo significante, colocando o mestre no trabalho, que será possível o aparecimento dos outros discursos. Penso que é por isso que Lacan coloca o discurso da histérica como o primeiro no “progresso” dos discursos.

O analista não tem nenhum privilégio em relação ao impossível, mas sua posição dá prioridade ao seu discurso sobre os outros, pois o analista só assume seu lugar através de seu ato, o ato analítico, que como todo ato tem a direção do real. Esta diferença faz deste discurso um laço social inédito, pois nos outros discursos se pode estar, ao contrário do discurso do analista, onde só se pode passar, não se pode permanecer no real. No seminário Mais ainda, Lacan afirma que, sempre que há mudança de discurso, há uma passagem pelo discurso do analista, o que equivale dizer: só se muda de discurso ao se confrontar com o real. O discurso do analista é então um discurso de passagem para os outros discursos. É, portanto, um discurso que começa colocando o real em uma posição privilegiada. O analista se confronta com o impossível necessariamente, ao assumir seu lugar — é por isso que o analista tem horror do seu ato. Por estas razões é que o discurso do analista pode ordenar os outros discursos: ele vai demonstrar suas impossibilidades.

A análise nos introduz em um encaminhamento fecundo, diz Lacan, que não é o pensamento, mas o ato. É isso que parece revolucionário. Este encaminhamento não é também em torno do sujeito. Seja qual for o resultado que a interrogação da histérica tenha produzido, por exemplo, a ciência, nem por isso a chave dos mecanismos está ali. A chave está na indagação sobre o que causa o gozo (1) . No ato do analista, criando o discurso do analista, fica claro uma questão discursiva que estava oculta, que há produção de gozo, demonstrando uma disjunção em todos os discursos no mesmo ponto, entre a sua produção e a sua verdade, que, devido à revolução dos quatro termos, ela se dá cada vez entre termos diferentes. É o que causa o que é chamado de impotência. É a análise que demonstra que a estrutura se funda na interdição do gozo, vale dizer, demonstra a existência do gozo.

Pode-se relacionar o impossível com o ato e a impotência com o sintoma. Pois só se pode lidar com o impossível através do ato, que inicia algo novo, havendo uma mudança de qualidade, uma ultrapassagem de uma cesura, introduzindo descontinuidade entre o antes e o depois. Na impotência há uma infinitização, uma repetição, uma continuidade, tenta-se resolver o impasse através de uma quantidade, tentando chegar lá fazendo mais e mais. O sintoma tem esta estrutura. Por essas relações, mais uma vez fica claro o lugar do discurso analítico, pois é nele que o ato é decisivo, e é nele que o sintoma fica explicitado.

A impotência será relacionada com a parte inferior dos discursos, especificamente com um lugar que resulta do trabalho, ou seja, a sua produção, em relação àquilo que ocupa o lugar da verdade. Aquilo que o discurso produz é impotente em mostrar a verdade deste mesmo discurso, não há relação entre a produção e a verdade.

A formulação da impossibilidade discursiva é freudiana, mas é somente a constatação de um limite, talvez solidária ao impasse freudiano, a questão do pai, a impossibilidade de seu ultrapassamento, o rochedo da castração onde se bate o fim de uma análise. Lacan vai partir daí, vai dar corpo a esta impossibilidade, vai escrevê-la com letras. Indo mais longe, vai articular o caminho por onde a impossibilidade é mantida, ou seja, vai formular a impotência como aquilo que nos detém diante do real e do impossível. E o que nos detém diante do real é a nossa relação com a verdade. É por nos tornarmos amantes da verdade que ficamos paralisados em nossa impotência. Vejamos então como isso é articulado nos discursos.

No discurso do mestre,a produção do mais-de-gozar não tem nenhuma relação com a verdade, lugar ocupado pelo sujeito. O que constitui sua impotência será a relação proposta pela fantasia, o sujeito fica preso, capturado a um gozo articulado pela fantasia, com sua característica imaginária e totalizante, impedindo-nos de ter acesso ao real do objeto, ao real do funcionamento da linguagem, este impossível que está escrito na parte de cima do discurso, ou seja, que pelo significante não se captura jamais o objeto, que é sempre sobra do seu próprio funcionamento.

No discurso da universidade, a produção do sujeito comandada pelo saber não tem nenhuma relação com o que o comanda, o S1. Neste discurso, ao se contabilizar o mais-de-gozar, ao tirá-lo do lugar de resto, colocando-o no lugar de trabalho, passando a ser algo que se sabe, ele se reifica, isto faz com que ele não se perca mais; ao contrário, permite-se que ele seja acumulado, ele se transforma em capital. É a partir da mais-valia que a impotência do discurso do mestre é esvaziada; fazendo, ao mesmo tempo, com que o significante mestre fique mais inatacável na sua impossibilidade, ele vai ocupar o lugar da verdade. Pois, como já foi dito, nesse discurso a impossibilidade do significante mestre de capturar o objeto é escondida pela fantasia. Essa conjuntura de o sujeito aparecendo no lugar da perda e o objeto no lugar do trabalho permitirá pensar a alienação apontada por Marx, é um objeto que trabalha, um objeto quantificável. Não há subjetividade no trabalho no capitalismo: a subjetividade está colocada enquanto resto.

No discurso da histérica, a produção do mestre ao pedido da histérica – o saber —, não tem a ver com o que causa o sujeito, não esclarece os seus sintomas, portanto não esclarece sua demanda. O que a esclareceria o objeto causa do desejo está no lugar da verdade, recalcado. A histérica é dividida pelo objeto, ela tem problemas com o desejo, ela quer ser desejada pelo mestre enquanto sujeito (impossibilidade), enquanto só pode ser desejada como objeto. No discurso da histérica, a impotência é a do saber dar conta da divisão do sujeito, que tem sua origem no objeto, que está no lugar da verdade. Podemos exemplificar com o saber médico, que foi impotente em esclarecer os sintomas da histérica.

No discurso do analista não podemos vincular o S1 aí produzido ao que está em jogo na posição do analista, isto é, a sedução da verdade que ele apresenta,de vez que saberia um bocado sobre o que em princípio representa. (2) O que ele saberia sobre o que representa? Se ele representa o agente, a causa do desejo, ele aparenta saber sobre a causa do desejo, mas o saber está no lugar da verdade e inacessível. Daí a impossibilidade da sua posição. A sedução da verdade é constituída pela transferência. O analisante vai atribuir o saber ao analista, ele será tomado com o Outro, o lugar do saber, S2. É ele que saberia os significados dos seus sintomas, o que para o paciente organiza um saber, seus S1. Só que isso se dá através da ilusão de pensar que o saber é somente significações, ignorando a estrutura significante. O que o analista faz é conduzir o analisante a desvelar o que produz sentido no saber, os chamados significantes-mestres, aos quais estamos assujeitados. Esta manobra do analista, apontar os S1 do paciente, ficaria oculta, pois o paciente não quer saber que há uma estrutura significante à qual está submetido, ele acredita que se pode ter o saber, assenhorear-se dele através do analista. Nesse sentido, o paciente acredita que o analista possui o saber, constituindo o que é a transferência, que certamente constitui um obstáculo à confrontação com a impotência do saber, tendendo a produzir uma infinitização do processo. Isso fica claro nas teorias pós-freudianas do final de análise, como a da liquidação da transferência, ou seja, que no fim da análise o paciente se assenhorearia do saber do qual o analista seria o detentor.

Lacan vai interrogar se as impossibilidades dos discursos analítico e histérico seriam álibis, justificações aceitáveis dos discursos do mestre e universitário, ou seja, para os resolverem na impotência. Pois a impossibilidade dos primeiros, a→S e S→S1  , as partes de cima dos referidos discursos, são as mesmas letras do lugar das impotências nos outros dois, só que de modo invertido. Lacan vai nos dizer que, ao contrário, é através da impotência dos dois primeiros que vai se evidenciar a impossibilidade dos dois últimos.

Não há análise senão na impossibilidade de governar aquilo que não se domina, ao traduzi-la como impotência da sincronia de nossos termos: mandar no saber. Para o inconsciente, isto é barra. (3) Não há análise a não ser na impotência de dominar o saber. Aquilo que o paciente vivencia como impotência é na verdade impossibilidade. E é a ilusão da impotência que promove, por outro lado, a transferência.

É o discurso do analista que evidencia a impossibilidade de governar pela impotência do S1 de comandar o S2. Dito de outra forma: não se comanda o inconsciente. Demonstra-se, então, pela análise, que governar fracassa. É a partir da descoberta do inconsciente que podemos ver abalada a certeza de que o homem é senhor de si mesmo, constituindo uma das feridas narcísicas da humanidade, como disse Freud. O discurso do analista vem transformar em impotência a impossibilidade do discurso do mestre, porque ele leva em conta que comandar o saber não se pode, mas não se pode pela impotência trazida pelo gozo, pois é deixando o saber no seu livre jogo que o gozo é permitido, ou seja, nós gozamos da linguagem. É no exercício da linguagem que constatamos que nunca conseguimos dizer tudo que queremos, temos sempre a sensação de que podíamos dizer melhor, ou seja, não comandamos a linguagem, há algo que patina, que não deixa que cheguemos lá. Esta barreira é a do gozo. A impotência mostra essa característica paradoxal do gozo, a sua falta mas também a sua possibilidade.

Da mesma forma, o discurso da histérica mostra que o saber produzido nesse discurso pelo mestre não dá conta de resolver o problema histérico, ou seja, não se controla o desejo pelo saber, o que equivale dizer, pela educação, mostrando que o discurso da universidade, o discurso da educação, fracassa. Não se educa o desejo, o que mostra a fronteira entre a psicoterapia e a psicanálise. S2(saber) não consegue comandar o a(desejo), a linha da impossibilidade do discurso da universidade.

Estas inversões feitas por Lacan, tomando a linha de cima de um com a linha de baixo invertida de outro, servem para mostrar de onde as impossibilidades tiram seus álibis (a justificação aceitável da impossibilidade), isto é, para não serem vividas como impossibilidades, o impossível fica elidido sob a impotência. É desta forma que o neurótico se defende do impossível, se instalando na impotência.

Outra forma de trabalhar os discursos é mostrar que as impotências dos discursos são armadilhas que imobilizam o sujeito em direção ao real, portanto ao impossível. A impotência nos esconde o impossível.

No discurso do mestre, a impotência é a própria fantasia, pois, ao nos relacionar de forma particular com o objeto — nos cristalizando em uma maneira particular nesta relação, na conjunção/disjunção que esta estrutura nos permite, há um acesso/impedimento ao objeto —, nos dá uma parada em direção ao real, dito de outra forma, nos oculta a impossibilidade do objeto através da impotência.

No discurso da universidade, o significante-mestre sendo elidido, pois está no lugar da verdade, a representação do sujeito também é elidida – lembremo-nos da definição de significante: é o que representa o sujeito para outro significante. O sujeito fica confundido com o saber, não podendo ter seu lugar, que é um lugar real, impossível, entre S1 e S1. Esta confusão é o Eu, que fica à deriva de um saber que sempre é insuficiente, portanto impotente. A impotência do saber tapando a impossibilidade do sujeito.

Pode-se perguntar o que faz o S1 funcionar – o agente não é forçosamente aquele que faz, mas aquele a quem se faz agir … não é tão claro que o mestre funcione. (4)

O mestre tem então sua razão na histérica, (5) já que é ela que se dirige a ele pedindo o seu desejo, ao qual ele responde com saber e não como homem, ou melhor, encarrega o escravo (aqui já no discurso do mestre), aquele que detém o saber, de produzir o mais-de-gozar em seu discurso, ou seja, ele não consegue produzir com o seu saber que a mulher fosse causa do seu desejo. O discurso da histérica mostra que o mestre não consegue fazer com que o escravo produza aquilo que o faria desejar (o mestre não deseja), aumentando o rigor da sua impossibilidade

E é por se situar “em progresso com relação ao discurso da universidade que o discurso do analista poderia cernir o real que sua impossibilidade exerce a função (6) qual seja, a de educar o desejo. Como? (7) Pois o discurso do analista mostra, em primeiro lugar, que o saber é da estrutura, do Outro, ele não pode comandar o desejo. Em segundo lugar é somente ao acuar o impossível em seu último reduto que a impotência adquire o poder de fazer o paciente transformar-se em agente (8) O objeto a, impossível de se atingir, aparece em cada discurso em um lugar. É somente no último discurso a surgir, o novo discurso que é introduzido no mundo pela psicanálise, constituindo um laço social inteiramente novo, que ele ocupa o lugar de agente – é aí que ele tem seu último reduto.

Acuar o impossível no seu último reduto significa: o analista, no seu ato, representar a causa do desejo, o objeto a, colocá-lo em posição de dominância do discurso. Somente assim é que a impotência de mandar no saber, que somente fica evidenciada neste discurso, poderia fazer o paciente mudar de posição e tomar o lugar do trabalho, passar da queixa histérica ao trabalho que está em jogo na análise ao trabalho significante.

Todo este trabalho de Lacan mostra que o impossível e a impotência são dois pontos de tensão, como o ato e o sintoma, não havendo como superar estas polaridades, uma não existe sem a outra. Trata-se, na análise, é de sustentar esta tensão. Assim, é através do trabalho da fala, que produz uma redução no seu dito através da produção dos seus significantes-mestres, que o analisante pode se aproximar novamente da sua forma primeira de defesa do real, que constitui a fantasia da qual ele goza.

odiscurso

 

 

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1. Lacan, Seminário O avesso da psicanálise.
2. “(…) somos impotentes para vinculá-lo (o novo S1 produzido pelo analisante) ao que está em jogo na posição do analista, a saber, a sedução da verdade que ele apresenta, de vez que saberia um bocado sobre o que em princípio representa.” Idem.
3. Lacan, Radiofonia.
4. Lacan, Seminário O avesso da psicanálise.
5. “Assim, o discurso do mestre tem sua razão no discurso da histérica pelo fato de que, ao se fazer agente do Todo-Poderoso, ele renuncia a responder como homem ali onde, ao lhe solicitar ser, a histérica não obtém senão saber. É ao saber do escravo que ele encarrega desde logo de produzir o mais-de-gozar do qual ele não conseguia, a partir do seu (do seu saber), fazer com que a mulher fosse causa de seu desejo. (eu não digo: objeto).” Radiofonia.
6. Idem
7. “Supondo-se que ele (DA) queira submeter à questão do mais-de-gozar, que já tem num saber sua verdade, a passagem do sujeito ao significante-mestre. Isso é supor o saber da estrutura.” Idem
8. Idem.